quarta-feira, 29 de julho de 2009

Fuga



Sentia um vento forte lhe lamber o copo. Abriu os olhos, mas não via muita coisa, tinha muita lágrima atrapalhando. Mesmo assim, achou bonito o que viu: um breu rebuscado de um brilho colorido num movimento uniforme, que o iluminava por alguns instantes e se apagava em seguida.
Tinha uma ferida no coração que latejava como nunca em toda sua vida latejara antes, estava imóvel e sentia–a concentrado. Vinha dilacerando tudo e se afastava um pouco e lá se vinha de novo, num vai e vem que se repetia e repetia.
Conseguiu destravar o pescoço e olhou pra baixo. As luzes passavam frenéticas e por vezes o vento era maior e seu chão tremia.
Não tinha mais certeza de nada. A ferida latejava, seu corpo não respondia a qualquer estímulo que tentasse fazer no sentido de sair dali e qualquer outro pensamento era bloqueado pela dor pungente. Mas tinha certeza que um estímulo seria obedecido e que seria o fim de todo o flagelo.
Inclinou o corpo para frente e mergulhou no vazio da noite.
Isso o fez sentir que estaria livre da chaga que ardia. Com o feito, a dor realmente desapareceu e nesse momento de alivio sentia o vento da queda envolver seu corpo. Relaxou e conseguiu novamente raciocinar um pouco.
O zumbido do vento no ouvido era como música, se sentia leve. Lembrou então, da ferida como algo distante, passado há muito tempo e de longe viu outras feridas, mas que não eram a sua..
Algumas eram muito, muito grandes e seu latejar era mais frenético e avassalador, outras menores e outras iguais a que tinha.
Comparou com a sua e nesse momento entorpecido pelo alívio não conseguiu sentir nada. Entrou num vácuo de sensações que o limitou a só se perceber em meio a milhões de chagas alheias.
Quando sua mandíbula atingiu o chão e seu corpo acompanhou o movimento num estranho balé. Foi como nada. Ainda estava no vácuo das sensações.
Seu coração parou de bater não por causa da dor que outrora sentia, nem por ser atingido por alguns carros que passavam sob o viaduto ou qualquer coisa que tenha sentido até então.
Quando o vácuo se desfez e sua razão se fez presente, sua vida se esvaiu de vergonha.

3 comentários:

  1. Val, adoro seus textos, não pq são bons, ou bonitos, mas pq são extranhos. Vc tem uma maneira peculiar de escrever e adoro isso. Vc foge do comum, não segue regras, e suas impressões são fabulosas. É claro que nem sempre eu concordo, mas quem disse que é pra concodar?
    As vezes me irrito, mas é disso que gosto, de me irritar com os textos alheios pq não os entendi, ou porque são estranhos demais !Parabéns Val !
    Flávia Carvalho

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  2. Flávia, será q a estranheza se estende a mim também? mas tudo bem... ja não entro onde tem plaquinhas de "proibido a entrada de pessoas estranhas" mesmo.. então. Tudo bem!!
    beijo.

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  3. Grande Valmir,

    a extrapolação interna das chagas externas sempre atinge nossas íntimas verdades: como uma pele tirada do coração. Eta, ferro! Fui buscar no fundo da alma esse comentário, pra ficar cabeça. Mas, de fato, sua crônica dá margens às interiorizações.
    Valeu, meu velho. Um grande abraço e continue aí, mandando bala na história da literatura...
    Abração,
    Alaor Ignácio

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