segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Ele




O encontrei no cantinho do muro, ali no gramado perto da calçada que lhe servia de berço de agonias.
Só  movimentava os olhos perdidos em súplicas indulgentes.
Bem, mas bem lá no fundo um brilho de esperança. Que só eu vi.
Em que? Não sei. Nem ele sabia.
Talvez esperasse que alguém o salvasse ou que simplesmente o deixasse ali quieto atrelado à vergonha de ser o que era.
Mas eu o vi. Como se não bastasse, o acolhi.
No fundo já vislumbrava meu futuro, mas ignorei como quem abandona uma dieta.
Cuidei, alimentei, acariciei e ele cresceu e corou.
De seu corpo que jazia no breu resplandeceu luz e pode então correr pelas ruas, sorrindo e saltando.
Quem o via, à princípio não o reconhecia.
Seu sorriso  saciava os olhares ávidos e seus movimentos languidos enebriavam desavisados.
Do rosto melancólico não se via nada. Tinha agora um ar fulgente e movimentos viscosos e escorregadios.
Balbuciou palavras desconexas, mas logo eloqueceu meus dias e eu que não sorria, sorri.
Foi aí que começou a falar de si.
Parecia piada. Pudera eu de novo cometer um erro tão recorrente?
Matei-o com a frieza de uma criança que esmaga uma formiga  no jardim.
Pus a faca no chão e fui pro balanço da mangueira. Só lá eu tinha pensamentos puros.


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Foto de Lucas Dias. Mais trabalhos dele aqui: https://www.facebook.com/lucaskdias/photos_albums